quinta-feira, 4 de agosto de 2011
O desencanto de Trier
Melancolia (Dinamarca, 2011) reafirma Lars Von Trier enquanto criador de uma ácida visão do ser humano. Se comparado com Anticristo, seu último trabalho, é como se ele reformulasse os mesmos princípios - o do desencanto e descrença no projeto Ocidental de civilização, só que abolindo a tortura física e psicológica. É uma obra maior, tanto em abrangência filosófica quanto na elaboração visual.
Em termos de gênero, se aquele era uma históra de terror, este pode ser classificado de filme-catástrofe. Mas ao contrário dos produzidos em Hollywood, sem o fatídico final feliz. Nesse sentido, Trier deve ter desdobrado seu prazer iconoclasta em escalar um elenco significativamente caro para a indústria norte-americana. A começar por Kirsten Dunst (a Mary Jane da trilogia Homem-Aranha), a qual encontramos em processo de rompimento social e reconexão com impulsos ancestrais.
Logo de cara, ela protagoniza uma sequência plasticamente sublime, em que, vestida de noiva, é apropriada pelas forças da Terra. A diferença entre personagens homens e mulheres é outro elemento comum aos filmes de Trier. Todos eles, a começar pelo noivo (Alexander Skarsgård) e o pai de Justine (John Hurt) se mostram uns bobocas inseguros frente às mulheres, mães, fortes e ligadas à força da natureza.
Aparentemente, tudo ia bem na vida de Justine. A encontramos na festa de seu casamento, oferecida pelo cunhado (Kiefer Sutherland), cientista que estuda um estranho planeta cuja órbita fará uma pirueta em torno da Terra. Em processo deflagrado pelo desprezo da mãe (Charlotte Rampling) diante do vazio festivo (essa parte é muito parecida com Festa de família, queTrier produziu), Justine adquire outro semblante, à medida em que o planeta se aproxima.
O som é outro trunfo do filme, que aliás, parece ter sido escrito em partitura, tamanha a precisão de sua narrativa. A música-tema, Tristão e Isolda, de Richard Wagner, só reforça a ligação em comum entre o compositor e o diretor: Nietzsche. Em Melancolia, a ética da vida prescinde de valores como o bem e mal. Para ele, há tanta beleza na destruição quanto na criação.
Maior do que qualquer polêmica
Mais do que a principal estreia da semana, Melancolia é um dos melhores filmes do ano. Em maio, quando exibido pela primeira vez no Festival de Cannes, era sério candidato à Palma de Ouro, mas uma série de mal-entendidos diminuíram suas chances e fizeram Lars Von Trier ser banido do evento. Na época, o diretor dinamarquês “trolou” sem querer a própria coletiva de imprensa.
Primeiro, constrangeu seus atores ao brincar com a homossexualidade de Udo Kier e dizer que, agora que conhece Kirsten Dunst “sob todos os ângulos”, seu próximo filme será um pornô de três a quatro horas estrelado por ela e Charlotte Gainsbourg. “Mas precisaremos de uma hora de intervalo entre a sessão e a coletiva”, completou.
Mais na ânsia de chocar do que por sinceridade, Trier excedeu os limites quando, questionado sobre seu suposto antissemitismo. “Por muito tempo, pensei que era judeu e era feliz. Então conheci a Susanne Bier (diretora de Em um mundo melhor). Foi quando percebi que, na verdade, eu era um nazista. Minha família era alemã. Eu entendo Hitler. De certa forma, posso simpatizar um pouco com ele, ao vê-lo no fim da vida, em seu bunker”. Ao perceber que falar mais só pioraria a situação, encerrou dizendo: “Ok, sou nazista”. A repercussão foi a pior possível, o que levou o festival, mesmo após pedido público de desculpas, a tratá-lo como persona non grata.
Agora, com o filme em cartaz, é possível perceber que a polêmica ofuscou um filme impactante, um dos melhores do diretor de Dançando no escuro e Dogville . E que mesmo sendo melhor do que o vencedor em Cannes (A árvore da vida, de Terrence Malick), o festival reconheceu o belo trabalho de Kirsten Dunst, eleita melhor atriz. Foi o único prêmio conquistado pelo filme. É provável que nem o enfant terrible do cinema mundial esperava por essa.
(Diario de Pernambuco, 04/08/2011)
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