segunda-feira, 6 de abril de 2009

Wim Wenders e o Cinema além das fronteiras do croma key



Porto Alegre (RS) - Lá fora, vento frio e chuva fina. Dentro, no silêncio de um teatro lotado, ecoa a voz de uma única pessoa, de fala pausada e movimentos leves como os anjos: nada menos do que o cineasta alemão Wim Wenders, que esteve em Porto Alegre na última segunda-feira, a convite do projeto Fronteiras do Pensamento Copesul Braskem. Em seu discurso quase sempre inspirador está um recado bem claro: o da necessidade em valorizar o território em que se pisa, e a importância do cinema nessa busca pela cultura local. "Falo não como intelectual ou filósofo, mas como quem aprende olhando, ouvindo e viajando", disse, durante o evento mediado pelo realizador gaúcho Carlos Gerbase. Para ilustrar suas idéias, exibiu Crimes invisíveis, curta-metragem de sua autoria sobre mulheres violentadas nas zonas de conflito africanas, sob encomenda para a organização Médicos Sem Fronteiras.

Nascido na Alemanha do pós-guerra, desde jovem Wenders quis conhecer outros países.Ainda criança, viajou para a Holanda de bicicleta. Adolescente, trocou seu saxofone por uma câmera 16mm, dando início à carreira de cineasta em permanente trânsito. "Às vezes é preciso viajar para longe para redescobrir e aceitar o que está perto", disse, durante a conferência. Poucas horas antes, ele concedeu uma generosa entrevista coletiva, com a presença de veículos da imprensa de Portugal, Uruguai, Argentina e Brasil. Entre eles, o Diario de Pernambuco marcou presença. Frente à frente com o mestre, uma pessoa serena e centrada a refletir antes de cada frase, é possível entender um pouco mais sua obra. Um pensamento que, assim como seus filmes, convida a conhecer a si e o chão em que se pisa - sem pressa alguma.

OLHAR DO VIAJANTE
Praticamente todos os meus filmes surgiram do meu interesse em descobrir algum lugar. Nasci em Oberhausen, poucos meses depois da 2ª Guerra Mundial, num país devastado e sem esperança, perdido em vergonha e culpa. Desde cedo percebi que havia algo de errado naquele país, e quis saber como outras pessoas viviam. Através do cinema recebi as primeiras mensagens de lugares distantes. Aos 16 anos, faltava a escola a cada três dias para assistir filmes. Primeiro, assisti a Memórias do subdesenvolvimento, de Tomas Gutierrez Alea. Depois, um filme argentino de Fernando Solanas. Depois, o incrível Deus e diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. E logo após, Terra em transe, que se instalou profundamente no meu cérebro e colocou o Brasil no meu mapa. Foi como uma revelação: eu precisava estar lá. A mesma revelação tomou conta da minha vida quando assisti Tokyo story, de Yasujiro Ozu. Quando vi um western de John Ford e Anthony Mann, descobri a América. Esses filmes me fizeram sentir vontade de conhecer o mundo. A partir de então, viajar se tornou minha profissão.

ASAS DO DESEJO (1987) - "Os lugares têm memória"
Fiz esse filme sem roteiro algum, a partir de lugares que gosto em Berlim. Quando voltei dos EUA, tentei redescobrir meu próprio país, minha própria língua. Quis filmar uma história sobre Berlim, mas não conseguia encontrar um personagem para contá-la. Pensei em bombeiros, médicos, carteiros, mas nenhum deles poderia fazer justiça à cidade como um todo. Foi quando, olhando ao redor, a cidade evocou seus próprios protagonistas: havia figuras de anjos nos monumentos, na decoração, nas ruas. A cidade falou por si. O mesmo aconteceu em Paris Texas (1984), que praticamente se escreveu sozinho. Acredito que os lugares têm histórias próprias para contar. Aprendi a respeitar a autonomia dos lugares. Daqui a milhares de anos, quando ninguém se lembrará de nós, os lugares estarão aí. E se lembrarão de nós, porque os lugares têm memória.

CINEMA E FRONTEIRAS
Não tenho o menor interesse em histórias que poderiam acontecer em qualquer lugar. Entedio-me mortalmente com filmes feitos na "Terra de ninguém", com atores que não se encontram e não vão a lugar algum. Quero histórias movidas pela experiência, pela descoberta. Com a globalização, o sentido de local está desaparecendo. Muitos lugares no planeta estão se tornando iguais. Nós podemos mantê-los diferentes, e somente o senso de lugar permite que façamos alguma coisa. As pessoas viajam pelo mundo em trilhas marcadas, vão onde supõe-se que devam ir, fotografam onde deve-se fotografar. Essa é a diferença entre turista e viajante. Por mais que se desloque, o turista fica irremediavelmente em casa. Mas nem tudo está perdido. Podemos aprender a preservar e cultivar nosso sentido de lugar. E o cinema pode nos ensinar a respeitar e aceitar fronteiras e ouvir o que os lugares têm a nos dizer.

CINEMA E IDENTIDADE
As imagens são as armas mais poderosas do século 21. Na medida em que avançamos para um futuro global, precisamos valorizar nossas fronteiras, preservando nossa identidade. Ter identidade é repousar em si mesmo, saber quem você é e a que lugar pertence. Identidade é formada e definida por limites, escolhas e experiências. Nações prosperarão não apenas pela força econômica, mas pelo sentido de identidade, e o cinema tem uma tarefa enorme nesse sentido. Desisti de esperar isso da TV, que causa mais dano do que tudo por ter se tornado a voz do consumismo. Só esse cinema específico pode comunicar algo diferente, e é ele que deve viajar pelo mundo. Só o cinema permite essa voz misteriosa que fala com o público numa relação mágica.

CINEMA GLOBAL X LOCAL
Há dois tipos de cinema. O maior, poderoso, é distribuído quase simultaneamente no mundo todo. Esse cinema sem fronteiras, não considera as experiências da vida. Ele é feito, antes de tudo, da experiência de outros filmes. Acredito no outro, diferente, pequeno, mas de grandes pretensões, feito em todos os lugares, e que precisa ser cuidadosamente preservado. Honestamente, prefiro assistir Central do Brasil vinte vezes do que ver uma segunda sessão de Superman, Matrix ou Harry Potter. Eles podem divertir, mas não conseguem alimentar nossos espíritos. Os olhos podem se acostumar com fast food, mas precisam de comida saudável para ficar em forma.

MESTRES E APRENDIZES
Quando era um jovem diretor, meus pais artísticos eram todos os pintores. Por causa da situação histórica da Alemanha, os cineastas não tinham pais, somente avós no cinema. Levou tempo para que eu estabelecesse uma relação com F.W. Murnau e Fritz Lang, por exemplo. Só que, de repente me tornei uma espécie de pai para uma nova geração de cineastas. E por mais que eu tenha gratidão aos mestres, estou mais interessado nos novos. Já faz 20 anos que leciono, mas as aulas não são sobre história, mas sobre o futuro do cinema. O que eles aprendem comigo é dar ouvidos à própria voz.

NICK'S MOVIE (1978)- "A morte é o maior tabu que existe na indústria cinematográfica"
O que ficou foi mais a experiência do que o filme como produto. Desenvolvemos o conceito juntos, com a idéia de um filme de ficção onde Nicholas Ray continuaria a fazer o papel de O amigo americano (1977). Começamos a filmar sem roteiro, seguindo nosso pensamento, na esperança de chegar no filme de ficção. Só que o câncer de Nick foi mais forte, e o filme virou um tipo de documentário sobre sua morte. Quis parar, mas o médico pediu para continuar. Só paramos de filmar depois do funeral. Foi assustador filmar o processo de morte. Esse assunto voltou no meu último filme, Palermo shooting, uma ficção em que a morte aparece como uma pessoa, furiosa com um homem que a fotografou. A morte é o maior tabu que existe na indústria cinematográfica.

ROCK'N'ROLL
Às vezes desejo fazer um filme como se fosse um rock. Infelizmente os filmes tomam mais tempo. Na verdade Alice nas cidades (1974) começou com uma música de Chuck Berry. Muitas vezes invejo os músicos do rock. Muitos músicos de rock são autores, como alguns cineastas, só que com mais liberdade criativa.

MANOEL DE OLIVEIRA
Continuo mantendo contato com Manoel e espero encontrá-lo no Festival de Veneza. Conheço-o há 20 anos, em dezembro do ano passado o vi pela última vez, e fizemos uma grande festa para comemorar os 99 anos de idade. Imaginem o que vai acontecer em dezembro, quando ele será o único cineasta que continua trabalhando aos 100 anos, fazendo filmes inventivos e inteligentes.

CHAMBRE 666 (1983) E O FUTURO DO CINEMA
Às vezes o melhor é admitir que não temos razão. A história mostrou que meu pessimismo estava equivocado sobre o futuro do cinema. Naquela época, ninguém dava a mínima para o cinema europeu. Só que ele se reencontrou e está melhor do que nunca. A maior parte dos que falaram naquele filme estavam errados. O único otimista foi Antonioni.

CRÍTICAS DA IMPRENSA
Depois de ter feito cinco filmes, fui aos EUA mostrar O Amigo americano. Naquela época, ainda lia críticas. Depois, percebi que todas diziam a mesma coisa: "esse alemão faz filmes que tratam de medo, alienação e América". E me dei conta que não poderia continuar assim. Aos poucos durante os anos que vivi nos EUA, aceitei que tinha o espírito romântico alemão, e depois disso meus filmes perderam a alienação. Em Asas do desejo, é possível encontrar até mesmo alguma felicidade.

publicado em 20 de agosto de 2008 no Diario de Pernambuco

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