quinta-feira, 23 de abril de 2009
Júlio Bressane, hoje, no Recife
O cineasta carioca Júlio Bressane está no Recife para apresentar seu mais novo longa, A erva do Rato.
A sessão será hoje, às 20h, no Cinema da Fundação (Derby). Inédito no Recife, o filme é uma livre adaptação dos contos A causa secreta e O esqueleto, de Machado de Assis. Fotografia de Walter Carvalho, com Selton Mello e Alessandra Negrini no elenco. faz parte do Festival Les 3 Continents, que segue até sexta também no Teatro Apolo (Recife Antigo).
Aos 62 anos, Júlio Bressane é um dos poucos brasileiros a fazer cinema experimental, filosófico e até mesmo erudito. Talvez por isso mesmo seus filmes (Matou a família e foi ao cinema, Mandarim, Filme de amor) não são tão vistos ou conhecidos pelo grande público acostumado com feijão e arroz televisivo.
No último Festival de Gramado, ele recebeu um merecido prêmio pelo conjunto da obra e exibiu seus dois últimos filmes: Cleópatra, com Miguel Falabella e Alessandra Negrini, e o curta-documentário Passagem em Ferrara, em que visita o túmulo do cineasta italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007).
Citando Niestzsche, Gaston Bachelard, Camões e filósofos gregos, ele participou de uma coletiva de imprensa, em que negou o conceito de cinema marginal (gênero em que foi enquadrado no fim dos anos 60) e defendeu sua arte com termos difíceis de decifrar, apresentando "imagem inconsciente do tempo" e "motivo fóssil" como chave de interpretação de seus filmes.
Bressane também falou sobre seu mais novo filme, A erva do rato, que seria exibido pela primeira vez na semana seguinte no Festival de Veneza, reduto onde seu trabalho é constantemente celebrado. Confira os melhores momentos da coletiva, originalmente publicados no Diario de Pernambuco. Palvras ditas de forma convulsiva, e que permitiram conhecer um pouco mais sobre o pensamento desse intrincado e indomável filósofo do cinema.
Cleópatra
Como queria uma versão em português, tive de fazer um deslocamento do mito de Cleópatra, não só no sentido geográfico, mas também narrativo. A força da língua portuguesa é a lírica, sobretudo a trovadoresca, e a versão que fiz é uma versão lírica, que vem de Camões até Dom Cabral, Drummond, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa. Coloquei tudo isso nessa colcha de detalhes da língua, e consegui uma respiração que até então não tinha encontrado. O resultado é o contraste, o paradoxo, o choque dentro dessa nova estrutura do mito.
Passagem em Ferrara
Meu encontro com Antonioni foi feito através da perspectiva. Ele era um homem que tinha essa consideração, e sabia que a perspectiva é o pensamento. É um filme de amor, pois eu tinha uma paixão muito grande por ele, que para mim foi um Deus. Deixei que o filme fosse feito fora de mim, sem minha interferência, esperando que isso dissesse alguma coisa dele próprio, e não de uma intenção minha. A minha idéia de Antonioni é a da imagem-sintoma, interrompida e recalcada. Essa minha apropriação me levou a pensar como eu queria um encontro com ele ainda vivo. Quando eu e um grupo de cineastas fomos ao túmulo, fui vítima do sintoma patológico. Tive uma sensação muito grande de mal-estar, porque eu senti o cheiro de seu corpo putrefato. Eu não sabia o que fazer ali, em desespero me dirigi a ele, pedi que me ajudasse. E, através desse gesto, desenvolvi o filme. Foi uma aproximação dos ossos do Antonioni, através de seu significante e daquela ordem geométrica que é o cemitério.
A erva do rato
O filme é uma sobrevivência a um motivo fóssil, e essa é uma chave de leitura importante para seu entendimento. O que nós precisamos ver ali é a imagem inconsciente do tempo, o que tem ali de memória inconsciente. O horror ao rato e o convívio com o esqueleto são dois enigramas - traços sensíveis e duradouros - que tirei de dois contos de Machado de Assis. A causa secreta é o horror ao rato, signo do apetite sexual, da morte e do tempo, lugar comum de toda a iconografia. Em O esqueletohá o convívio com essa figura caricatural da morte, que também é um sintoma de vida, porque a forma tem vida. Só que, depois de pronto, ele tomou outra dimensão. Faço filmes que não sei o que são. Se soubesse, não fazia, pois já estava resolvida a questão.
O "naufrágio" do espectador
Nós temos que reverter essa situação do naufrágio do espectador. É preciso um esforço grande [de interptetação, de compreensão de um filme] e isso foi abandonado em prol da juventude eterna e ereção prolongada. Isso não existe. Até para o grande prazer é preciso esforço, para sair da porcaria que a gente é. E geralmente a gente não sai, mas vale o esforço. Para buscar o filme, é preciso o abandono de si. Ou seja, evitar a tragédia humana que é a tendência à mediocridade. Fazer um esforço contrário à mediocridade seria o passatempo ideal na terra.
Cinema marginal e de baixo orçamento
Essa é uma questão completamente artificial. É uma tirania. O Brasil já é uma margem. Cinema marginal no Brasil só jogando no mar, e a idéia talvez tenha sido essa. Se não é marginal talvez um dia possa ser recuperado, como as imagens arrancadas do inferno. Nesse sentido, o projeto de cinema marginal se enquadra um pouco com o da exterminação nazista. Nunca postulei regime para fazer filmes de baixo orçamento, e nem sou a favor disso. Fiz filmes de baixo orçamento porque fui expulso do cinema brasileiro. Nunca tive filme lançado, nem peguei esses abacaxis que lançam em 200 cinemas e não pagam nem o durex que cola o cartaz. Em 1969, rompi com essa postura, de maneira talvez pouco diplomática, e isso me valeu uma condenação que dura até hoje.
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