quinta-feira, 5 de abril de 2007

Literatura em quadrinhos: Marcatti revela como adaptou Eça de Queiroz



Assim como muitos, fui apresentado ao trabalho do grande Marcatti nos idos de 1986, folheando a revista Chiclete Com Banana. Diferente da acidez de Angeli e do pastelão de Glauco, suas HQs faziam comédia de humor negro com todo tipo de perversão sexual e escatológica. Ou seja, com treze anos, aprendi que uma história em quadrinhos pode ser uma coisa bem suja.

Corta pra 2006. Marcatti surpreende ao lançar "Mariposa" (pela Conrad), história longa e trágica de um triângulo amoroso, em formato livro, capa e papel especial. Bem diferente do papel jornal da chiclete ou da revista em quadrinhos que lançou nos anos 90, Fráuzio. Até agora, foi o melhor tratamento dado a um trabalho seu.

Digo até agora porque a Conrad está rodando "A Relíquia", em que Marcatti adaptou para os quadrinhos o romance do escritor português Eça de Queiroz (1845-1900). O resultado são 186 páginas de quadrinhos, produzidas em 17 meses de trabalho. O lançamento será ainda neste semestre.




Pelos desenhos, dá pra sacar que vem por aí material de primeira qualidade.

Na entrevista abaixo, Marcatti falou para o Quadro Mágico sobre o processo de recriação de "A Relíquia", e suas impressões sobre quadrinhos e literatura. Ao que parece, ele deu um tempo na escatologia explícita para se dedicar à obra de Eça de Queiroz, de acordo com Marcatti, uma corrosiva crítica à burguesia católica do século 19.

ENTREVISTA // MARCATTI
"Foi a mais longa e trabalhosa HQ que já fiz"

Qual o motivo da escolha de "A Relíquia"?

Foi sugestão da Conrad a adaptação da obra de Eça de Queiroz através do meu trabalho. O Alexandre Linares enviou-me uma cópia de "A Relíquia" deixando-me completamente à vontade para fazer da forma que eu quisesse. Essa liberdade permitiu que eu tomasse todas as decisões a respeito. Mesmo assim, acabei por optar em fazer a adaptação buscando o máximo de fidelidade. Eu nunca havia lido qualquer livro do Eça e fiquei muito impressionado com sua força e, em muitos casos, com a ousadia com que ele abordou a burguesia católica do século 19!

Fale um pouco sobre o método adotado na "tradução" para a linguagem dos quadrinhos. Foi algo pré-estabelecido, ou mudou no desenrolar do trabalho?

De início, fiquei preocupado. Uma obra clássica com longos trechos que, apesar de contundentes e fascinantes, pouco tinha de cenas e movimentos que dessem fluência na linguagem das HQs. Minha solução foi utilizar e embutir essas magníficas observações do Eça de Queiroz dentro das cenas e das condutas das personagens. Fiz com que suas atitudes e comportamentos tentassem traduzir a carga corrosiva das críticas do autor. Foi tudo construído na fase de desenvolvimento do roteiro. Decidi que só começaria a desenhar quando eu tivesse definido completamente a mecânica narrativa.

Pensar um romance em imagens deve pedir muita imaginação e pesquisa. Como foi o seu processo de criação?

A maior parte da pesquisa que fiz foi em relação a arquitetura e o vestuário comuns em Portugal do século 19. Transformar o livro em imagens é que foi mais trabalhoso. Primeiro anotei somente as cenas do livro. Em separado, fiz um resumo conceitual do livro. Um resumo bem pequeno, quase uma resenha. Apenas para registrar o foco geral do livro. Como se eu tivesse perguntado diretamente ao Eça: "Que tipo de reação você esperava das pessoas que leram essa obra?". Infelizmente, coube a mim dar a resposta. Mas foi justamente esse ponto de vista que alicerçou e orientou toda a recriação das cenas. Gostei bastante dessa experiência e fiz com tanto prazer que nem parece que levei 17 meses nessa adaptação.

Deve ter sido o teu quadrinho mais trabalhoso, não?


De fato, foi a mais longa e trabalhosa HQ que já fiz. Mas, eu não sinto isso. Quando olho as datas que coloquei em cada uma das páginas originais, eu fico surpreso. Tenho realmente a sensação que fiz tudo em pouco mais de 2 meses. Foi uma lição! O Eça é uma escola. Acho que, se não fosse por esse trabalho, eu precisaria fazer mais umas 10 histórias para aprender tudo o que aprendi fazendo "A Relíquia".

Na sua opinião, os quadrinhos compreendem um gênero literário?

Sempre pensei em HQ como forma literária. Para mim, não faz nenhum sentido a distinção entre "literatura e quadrinhos". Soa-me estranha a expressão. Acredito que a forma pouco respeitosa como os norte-americanos enxergam a linguagem das HQs, somada a indiscutível influência cultural que exercem sobre o resto do planeta, contribuiu muito para essa distinção. Enquanto na Europa muios autores de HQ são reverenciados como gênios literários, a maioria dos grandes nomes da HQ norte-americana têm esse reconhecimento graças muito mais pelo sucesso comercial.

Tal como subdividir em prosa, verso, conto, novela etc, HQ é uma forma de exercer literatura. Caso contrário é o mesmo que fazer a distinção entre "conto e literatura".

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