É notável o crescimento da produção de HQs sobre episódios da História do Brasil. Nos últimos anos, tivemos "Hans Staden" (pelo pernambucano Jô Oliveira), "As Aventuras de Chalaça, o amigo do Imperador", e até um quadrinho sobre a presença judaica em Pernambuco no século 20 ("Passos Perdidos, História Desenhada"). A mais recente adaptação histórica em quadrinhos será a Revolta da Chibata, assinada pelos cearanses Olinto Gadelha (roteiro) e Hemetério (arte), a ser lançada ainda este ano pela Conrad - em breve, publicarei um texto somente sobre eles aqui no Quadro Mágico.
Para tratar do assunto com propriedade, nada como a palavra de quem faz. Autor de "Santô e os pais da aviação" (biografia de Santos Dumont) e "Viagem Quadrinhesca ao Brasil" (sobre a presença do artista francês Jean-Baptiste Debret na terra brasilis), o veterano João Spacca fala, com exclusividade para este blog, sobre os meandres da criação e da viabilidade deste tipo de projeto que mistura educação, arte e, claro, diversão. Seu currículo inclui a criação de desenhos publicitários, educacionais, infantis, participação na revista Níquel Náusea de Fernando Gonzales, e quase dez anos de charge editorial na Folha de São Paulo.
Alguns trechos da entrevista, realizada pelo jornalista e compositor recifense, Germano Rabello, serão utilizadas numa futura matéria, ainda sem nome. A ele e a Spacca, obrigado pela generosidade vertida em palavras.
É presumivelmente mais trabalhoso fazer um trabalho sobre temas históricos. Compensa realizar?
É realmente muito mais trabalhoso. Há várias maneiras de se trabalhar com temas históricos: pode-se usar a história somente como ponto de partida e fantasiar o resto (por exemplo, a minissérie "Quinto dos Infernos"); pode-se escolher uma época bem manjada que todos sabem como funciona (como o Velho Oeste Americano). Minha proposta, ou melhor dizendo: o meu jeito de trabalhar, é ser bastante fiel aos fatos ocorridos; é aproveitar os eventos reais, e montar com eles uma boa história, usando a seleção e o recorte, e raramente a invenção.
No meu caso, tenho trabalhado com épocas menos abordadas pela ficção, o que me obriga a pesquisar muitas informações, sobre tudo: questões políticas, hábitos do cotidiano, as tecnologias disponíveis, a moda, o jeito de falar, a moeda.
Por exemplo, quanto a uniformes militares: a Primeira Guerra Mundial é muitíssimo melhor documentada do que o período 1890-1910. Felizmente na internet há "nerds" e colecionadores que se ocupam de todos os assuntos... Depois de localizada a informação, deve-se desenhar isso de maneira ao mesmo tempo clara e natural: os personagens devem usar os objetos com naturalidade, não como se estivessem visitando um museu.
Se compensa? Bem, comparando com outros trabalhos, o ganho financeiro é muito menor, claro. Seis quadros de storyboard para publicidade dariam 1.200,00 reais: se o Santô me rendesse isso, eu deveria ganhar 144 páginas X 1.200,00 = 172 mil reais, o que eu talvez ganhe um dia se vender uns 40 mil livros em livraria, haha! (foram vendidos cerca de 3 mil, o que é considerado uma boa marca).
O que me move é o desejo de realizar, de ser lido, e de ser um bom negócio a
médio e longo prazo - ou seja, de ter um dia a possibilidade de trabalhar só
com isso em outros álbuns de quadrinhos. O que, considerando a possibilidade de alguns desses projetos serem adquiridos em grande quantidade por escolas e pelo governo, é uma esperança viável. O "Santô" foi adquirido em um projeto de bibliotecas públicas para todo o Brasil (PNBE).
Sente que isso lhe dá uma certa "legitimidade"? A HQ precisa desse referencial para ser aceita em círculos intelectuais ?
Sim, eu busco um tipo de legitimidade ao apoiar minha narrativa em uma pesquisa sólida, verificada nos mínimos detalhes. O que não impede de errar... por exemplo, no Debret eu desenhei o Conde da Barca retratado pelo Debret muito jovem. Estou mais ou menos desculpado porque, em ultima análise, é o Conde visto pelo Debret, e o artista era muito grato ao ministro de D.João. Mas o fato é que em 1816 Barca já estava meio alquebrado. Aprendi isto na pesquisa para o trabalho seguinte, que estou fazendo agora (D.João VI no Brasil). Então me preocupo com essas coisas, pensando não só na crítica dos leitores de quadrinhos, mas dos especialistas, historiadores etc.
Mas é uma coisa minha. Não sei se HQ "precisa desse referencial para ser aceita em círculos intelectuais". Tenho a impressão de que a HQ precisa desse e outros referenciais para ser aceita por quase todo mundo. A HQ, tradicionalmente, é um fruto da indústria cultural, uma revista barata de entretenimento descartável.
Mas como nos filmes B de Hollywood, surgiram autores que se destacaram e conseguiram fazer evoluir essa linguagem ao "estado da arte". Houve poucos períodos áureos (de grande vendagem ou de grande qualidade) nos quadrinhos. Ou ela era marginalizada porque era vista como lixo cultural; ou como obra de entretenimento puramente infantil; ou mais recentemente, como comunicação anacrônica, lutando para sobreviver na era dos games e da internet. Como sou leitor de algumas HQs muito boas, sei que essa linguagem pode alcançar níveis altos de qualidade.
E essa é a minha referência, quero fazer histórias cada vez melhores, tendo os grandes mestres como modelo. Espero que ela seja aceita, primeiro, como entretenimento, como leitura gostosa, prazeirosa para qualquer leitor. Em primeiro lugar também, como uma HQ de qualidade para quem conhece e gosta (espero conseguir isto, é sempre uma meta). Fora disto, o que vier é lucro.
Porque acha que tantos trabalhos sobre história estão surgindo ?
Não sei! Tomara que seja um efeito dominó: alguns lançamentos vão surgindo, conseguem ter boas vendas e repercussão, o que motiva outros autores e editores a apostar nesse filão etc. Pessoalmente, acho importante (além de gostar) porque a História nos informa sobre a nossa identidade, quem somos, de onde viemos.
Nos anos 30-40 do século XX houve também um boom de trabalhos históricos; algumas narrativas da época hoje nos parecem um pouco ingênuas e patrióticas num sentido deturpado; por isso há necessidade hoje de recontar a História de um jeito mais franco, mais objetivo.
O meu "Santô" neste sentido, creio, conseguiu evitar a armadilha do ufanismo para contar de forma mais imparcial e complexa a história de "quem voou primeiro" ou "quem é o pai da Aviação".
Será o efeito benéfico sobre os quadrinhos nacionais? Como você encara a abundância de títulos em livrarias e ausência de títulos (nacionais) nas bancas?
Eu aprendi a ler quadrinhos nas bancas, por isso lamento muito que não dê mais para fazer isso, da mesma forma. O cenário mudou muito: as bancas vendem de tudo - viraram uma loja de conveniência - vendem até revista... e ao mesmo tempo, deixaram de ser a principal fonte de informação barata - a internet ganha de longe.
O esquema de distribuição nas bancas, no entanto, parece que é o mesmo; só tem vez a publicação que vende muito e tem respaldo de outras mídias; além disso, um gibi fica pouco tempo na banca, corre o risco de ficar escondido e é recolhido logo e é vendido como papel velho...
Acho inviável, acho que é um esquema que acabou (por enquanto, pelo menos). O livro de quadrinhos na livraria é mais perene. Acabou virando um "alternativo de luxo": o que não tem poder para venda massiva, vai tentar a sorte na livraria. Acho que é o que é possível, hoje. E tem vida mais longa.
Em que nível a Cia. Das Letras interferiu no seu trabalho? Eles
encomendaram o "Viagem quadrinhesca" depois do sucesso de "Santô", ou você
propôs o tema?
Isso nasceu de um jeito meio inesperado. Logo em seguida ao "Santô", eu propus à editora uma biografia de Monteiro Lobato, na mesma levada do Santô, com 120 páginas. E o projeto foi aceito e eu comecei a tocar. Mas ao mesmo tempo, eles me pediram uma HQ de 18 páginas com o tema "viagem".
Podia ser qualquer coisa - o objetivo era comemorar os 20 anos da Cia numa edição coletiva, com outros quadrinhistas. Eu é que propus algo sobre História do Brasil, porque havia lido vários diários de viagem de estrangeiros ao Brasil no tempo do Império (Saint-Hilaire e outros). Aí pensei em Debret, e eu não conhecia direito a história dele. Li por alto e, apesar de não ter sido uma vida muito aventureira, encontrei alguns ganchos dramáticos que me ajudariam a construir uma narrativa interessante. Como o assunto é justamente o que a Lili Schwarcz (dona da editora) conhece profundamente, a primeira versão, com a qual eu não estava satisfeito, não
foi aceita. Ela fez muitas observações, e de fato eu tentei colocar muita coisa em apenas 18 páginas e ficou confuso.
Refiz o roteiro, focalizando mais o aspecto do pintor neoclássico nos trópicos, e ela gostou muito. Foi divertido, como se eu estivesse fazendo uma tese e ela fosse a orientadora. Nisso, a edição coletiva dançou. Mas eles já tinham aprovado a hitória e ela estava em produção, então eu sugeri a eles que fizessem da HQ um álbum,
completando com gravuras do Debret e cronologia etc. Eles toparam, e acabou ficando uma edição com cara de livro didático, que está sendo muito bem aceita pelos professores. E o Lobato continua de pé.
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